A pesquisa acadêmica e a pesquisa de UX
Neste texto, vou buscar trazer pontos de interseção e pontos de divergência entre fazer pesquisa no contexto acadêmico e fazer pesquisa de experiência do usuário no contexto do desenvolvimento de produtos digitais. As principais diferenças são: ritmo de trabalho, colaboração e entregáveis. As principais semelhanças são: processo guiado por hipóteses e o acumulo sistemático de conhecimento. No final, deixo algumas dicas para quem está interessado em fazer essa migração profissional.
Por que isso é importante para mim?
Resolvi escrever sobre as semelhanças e diferenças que percebi entre trabalhar com pesquisa acadêmica e com pesquisa de experiência de usuário alguns anos depois de concluir meu mestrado em engenharia. Apesar de já trabalhar como designer de produtos digitais na época do mestrado, esses anos que se passaram me ajudaram a criar alguma perspectiva sobre os dois trabalhos, que estou trazendo neste texto.
No processo de escrita, conversei com a Natalia Fragalle, arquiteta e pesquisadora de UX, que foi pesquisadora na USP de São Carlos, na mesma época que eu.
Aonde as pesquisas se afastam?
Na minha visão, as principais diferenças entre o trabalho de pesquisa acadêmico e o trabalho de pesquisa de UX são seus entregáveis. Além disso, também vejo como diferentes os ritmos de trabalho e colaboração com outros profissionais. Essas duas, vejo como uma consequência da primeira. Vale a pena falar de cada uma:
Entregáveis
Por via de regra, um trabalho acadêmico tem seu desfecho em uma monografia, seja uma dissertação ou uma tese; e esse trabalho demora anos para ser concluído. No meu caso, por exemplo, demorei 2 anos e 8 meses para concluir minha dissertação. Nesse tempo, os pesquisadores devem escrever artigos acadêmicos, que podem ser publicados em eventos ou periódicos da área. No total, são centenas de páginas escritas que compõem um trabalho acadêmico.
Na pesquisa de UX, por outro lado, os entregáveis podem ser diversos e inúmeros. Cada tipo de questão de pesquisa deve ter uma entrega diferente, que deve ser sucinta e objetiva. Em um teste A/B, por exemplo, a entrega pode ser tão simples quanto uma diferença em pontos percentuais de uma métrica entre dois cenários análogos. Já em um processo de entrevistas com usuários, a entrega pode incluir desenhos de personas, jornadas de usuário e muitos outros artefatos de design.
Enquanto na pesquisa acadêmica é muito difícil fugir do formato escrito de uma entrega, na pesquisa de UX, é fundamental saber adaptar o conteúdo dos resultados de pesquisa ao público que vai consumi-lo, seja numa apresentação ou numa documentação em repositório.
Ritmo de trabalho
Durante o período em que se faz pesquisa acadêmica, normalmente também devem ser feitas disciplinas que são relacionadas ao tema de estudo. No meu caso, trabalhando com propagação sonora, fiz disciplinas que foram de equações diferenciais (na matemática) até conforto acústico (na arquitetura). Nesse tempo, me foi permitido aprofundar no meu objeto de estudo durante bastante tempo, consegui escolher qual modelo matemático usaria e quais experimentos faria para avaliar minhas hipóteses. Na conversa com a Natalia, que estudou políticas urbanas londrinas, descobri que ela chegou a morar 6 meses em Londres para se aprofundar nos estudos. Apesar de os últimos meses serem sempre muito corridos, a pesquisa acadêmica requer muito mais tempo para aprofundamento e aprendizado.
Na pesquisa de UX, vamos a um outro extremo. No contexto de produtos digitais, a pesquisa de UX geralmente está atrelada a um processo de desenvolvimento, que não pode esperar meses por um aprendizado acionável. Por isso, é muito comum não conseguirmos nos aprofundar o quanto gostaríamos nos temas; pelo contrário, é muito recomendável que façamos apenas pesquisas o suficiente para acionar o desenvolvimento dos produtos.
Além disso, dependendo da escala em que se pratica a pesquisa de UX em uma empresa, é um desafio para os pesquisadores não só pesquisar, mas garantir que outras pessoas façam pesquisas ao mesmo tempo, sem perder o rigor metodológico.
Colaboração
Na pesquisa acadêmica, embora muitas pessoas participem de grupos de pesquisa que trabalham temas similares, na grande maioria das vezes, o trabalho é solitário, principalmente nos últimos meses, quando o foco do pesquisador é em entregar seu texto. Além disso, boa parte do conteúdo acadêmico disponível é pago, o que pode limitar a quantidade de conteúdo disponível, especialmente se a universidade não possui muitos acessos ou se seu tema de pesquisa é muito específico.
Enquanto isso, no mercado de UX, há um sentimento de comunidade muito amplo entre os profissionais. São comuns grupos de discussões, onde são compartilhados trabalhos e conteúdos de suporte aos profissionais de UX. Além disso, dentro das empresas, o pesquisador de UX interage com designers, gerentes de produto, redatores e com profissionais de muitas outras áreas, desde a concepção da pesquisa até a produção das suas entregas.
Aonde as pesquisas se aproximam?
Apesar das diferenças significativas, os trabalhos de pesquisa acadêmico e de UX se aproximam na centralidade da formulação de hipóteses como o guia das iniciativas de pesquisa. Esses trabalhos também se assemelham na necessidade do acúmulo de conhecimento de maneira sistemática. Vale a pena, também, falar de cada uma:
Construção de hipóteses
O método científico é exercido, na pesquisa acadêmica, ao redor da avaliação de hipóteses baseado em observações, buscando explicar ou prever um ou um conjunto de fatos. No meu mestrado, por exemplo, eu avaliei os limites da hipótese da linearidade da propagação sonora em meios contínuos. As hipóteses implicam a pesquisa bibliográfica e os experimentos feitos para avaliá-la.
Li uma parte do trabalho da Natalia e identifiquei que ele foi discorrido sobre a seguinte hipótese:
"A cultura passou a se tornar mediadora das relações sociais pelas quais o capital é produzido […] evidenciando o papel significativo da urbanização como meio de se atingir uma estabilidade econômica através do seu papel auxiliador na resolução de problemas ligados à produção excedente de capital e desemprego no capitalismo contemporâneo."
Ufa!
Em UX, as hipóteses de pesquisa também existem e são artefatos de comunicação muito importante para trazer objetividade e clareza para os esforços de pesquisa. Um teste de usabilidade pode partir da hipótese de que um determinado fluxo de interfaces gera uma carga cognitiva menor ao usuário, por exemplo, o que pode ser avaliado pelo tempo de se completar uma tarefa.
No contexto de UX temos um conjunto de metodologias menor que no contexto acadêmico, o que nos leva a ser mais rápidos na formulação de hipóteses, mas menos profundos nas suas avaliações. Contudo, nos dois casos, as hipóteses ditam a escolha da metodologia e são fundamentais para se ter resultados de qualidade.
Acúmulo sistemático de conhecimento
A formalidade dos entregáveis da pesquisa acadêmica não é à toa: resumo, abstract, palavras-chave, metodologia, conclusão, referências bibliográficas, anexos… Cada uma dessas partes componentes de uma monografia cumprem um papel na formalização do conhecimento adquirido pelo pesquisador. Além disso, as publicações precisam ser buscáveis, acessíveis e reutilizáveis por outros pesquisadores, mesmo que sejam de outras partes do mundo. Para isso acontecer, buscamos uma padronização da documentação, através de normas como a ABNT.
Em UX, não existem normas de documentação; em muitas empresas, pode não existir sequer a preocupação com documentação formal. Por estar geralmente associada a um processo de desenvolvimento ágil de produtos digitais, a pesquisa de UX deve se preocupar menos com documentações e mais com gerar informações acionáveis aos times de desenvolvimento. Embora isso enxugue boa parte do trabalho, pode ser um problema justamente por não deixar esse conhecimento buscável, acessível e reutilizável por outras pessoas. É responsabilidade do pesquisador de UX encontrar uma maneira de acumular esse conhecimento adquirido, o que muitas vezes acontece em forma de repositórios de pesquisa.
Palavras finais
Por fim, esse texto tem como objetivo incentivar profissionais de pesquisa acadêmica a conhecer a pesquisa de UX, mas também de incentivar profissionais de UX a se aprofundarem em pesquisas acadêmicas.
No fim da minha conversa com a Natalia, perguntei a ela qual dica ela deixaria para um pesquisador acadêmico que esteja tentando migrar para UX Research. Ela me respondeu que diria para essa pessoa conversar com outros pesquisadores de UX a fim de descobrir esse outro universo. Destacou que entender o universo de uma outra profissão também pode ser um processo de pesquisa guiado por hipóteses.
Somada a essa dica, eu diria para os pesquisadores acadêmicos interessados em migrar de carreira, que procurem por empresas e startups que estejam de alguma maneira ligadas a seu objeto de estudo acadêmico. Hoje em dia, muitas empresas de tecnologia buscam por profissionais de formações variadas a fim de entender o universo dos seus próprios clientes, como legaltechs, edtechs ou healthtechs. Podem ser bons lugares para se começar.
Gostou do texto? Recomenda para aquela pessoa que você acha que pode se inspirar com ele.